Quem diria que a ficção-científica
poderia partir da própria literatura e assumir compromissos com a antropologia,
psicologia, sociologia e outras coisas mais? É o que acontece em “A Mão
Esquerda da Escuridão”, da escritora norte-americana Ursula K. Le Guin.
Genly Ali, o protagonista, é um
representante de uma grande união de planetas habitados pela raça humana – o
Ekumen – que visa o comércio e a troca de ideias, conhecimento e cultura entre
os mundos que o compõem. Enviado ao gelado planeta Gethen, ou mais conhecido
como “Planeta Inverno”, Genly Ali almeja que tal mundo também possa se unir ao
Ekumen e estabelecer contato com o resto da humanidade que ocupa a galáxia; mas
as diferenças entre seus povos são gritantes.
Não se sabe ao certo como os
humanos de Gethen assumiram a forma que possuem; se foram obra da seleção
natural ou de alguma experiência distante dos primeiros humanos que visitarem o
planeta, mas o fato é que os gethenianos possuem uma forma andrógena onde não
há uma sexualidade estabelecida, isto é, durante a maior parte do tempo são
totalmente assexuados. Todos possuem traços masculinos e femininos,
impossibilitando a identificação convencional de homem ou mulher. A sexualidade
só aflora nos momentos do “kemmer”, o que pode ser considerado vulgarmente como
uma espécie de cio, onde dois gethenianos se unem e, dependendo do fluxo
hormonal, um assume a forma feminina e o outro a forma masculina. Como homem e
mulher residem em cada indivíduo, qualquer um poder ser mãe ou pai.
Seu modo de vida totalmente
diferenciado serve para deixar claro que no embate de culturas, há sempre
pontos de vista diferentes. Quando Genly Ali questiona o porquê de todos os
veículos gethenianos não ultrapassarem 40 km/h, a resposta é simples e óbvia:
Porque precisa ser mais veloz?
Genly Ali impressiona e assusta os
nativos. É centro de curiosidade de alguns e alvo de ataque para outros. Os
extremistas o chamam de pervertido, por ter uma sexualidade definida
permanentemente e poder ter relações sexuais a qualquer momento, além de
temerem uma invasão militar do grupo que o mesmo o representa. Outros o
consideram um lunático, que relata absurdos, afirmando que veio de outro mundo
há dezenas de anos luz de distância –, os gethenianos não desenvolveram nenhum
veículo capaz de voar.
Seu único aliado é Estraven, um
nativo que acaba por cometer erros e envolve Genly em várias intrigas internas
que causam tensão entre as duas maiores nações de Gethen, “Karhide” e
“Orgoreyn”, levando em consideração a época em que a obra foi escrita, nos
anos 60, notamos que ambas as nações e a tensão entre elas trata-se de uma
alegoria da Guerra Fria, onde Karhide representa o Ocidente e Orgoreyn
representa a União Soviética.
A narrativa é construída de forma
brilhante, intercalando entre os eventuais relatos do próprio Genly Ali, contos
e lendas da cultura de Gethen e relatos de Estravem, o que deixa o leitor a par
dos conceitos, dos mitos que ergueram aqueles humanos, da religiosidade e
também da dualidade sempre presente.
Vencedor das categorias máximas
nos prêmios Hugo Awars e Nebula, “A Mão Esquerda da Escuridão” é um exercício
para a criatividade, onde até as imagens são difíceis de imaginar sem um
esforço do próprio leitor, o que encanta ainda mais! O certo e o errado, o
ofensivo e o honroso, a forma como a sexualidade é retratada; tudo é diferente
e temos que ter em mente que o que nos é estranho é sempre mais fácil de ser
julgado, assim como também que tal preconcepção deve ser combatida.
Editora: Aleph N° de páginas: 296
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